União Europeia: um manicómio gerido por pacientes

(Maria Vieira da Silva, in Observador, 02/03/2025)

(De uma pequena toca pode sair um grande coelho. Vejam lá que até o insuspeito jornal da direita, O Observador, publica peças de qualidade sobre a lunática postura da União Europeia relativamente à guerra na Ucrânia. Pela primeira vez publicamos um artigo do Observador. Bem-vindo à Estátua.

Estátua de Sal, 03/03/2025)


A UE tinha duas opções: vencer a guerra ou preparar-se para a paz. Ao invés disso, ela perdeu a guerra e não se preparou para a paz.


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Não há aterro sanitário grande o suficiente para descartar o lixo produzido pelas elites europeias, com o apoio de uma legião de editorialistas, directores, locutores, jornalistas, “jornalistas de referência”, majores-generais, carreiristas e autodenominados especialistas em política internacional e especialmente na Rússia, com o objectivo de empurrar a Ucrânia para um conflito kamikaze ao prometerem uma vitória impossível sobre a Rússia.

As armas decisivas até à vitória sobre a Rússia e sanções para a colocar em incumprimento. Então as setenta doenças de Putin e o seu isolamento do mundo, o novo Hitler que invade a Ucrânia como primeiro passo para invadir a Europa (como se o art. 5.º da NATO não existisse). Depois, a primeira contraofensiva, a segunda, a terceira, cada uma mais surpreendente do que outra. Então o exército russo oficialmente quebrado, que ficou sem homens, munições, mísseis, tanques, navios e tudo o mais, e bate em retirada. Depois as listas de “pacifistas” tolos e de “putinianos” até o Papa e Dostoievski, o “temos o dever de apoiar a Ucrânia até ao último ucraniano”, as viagens a Kiev em sinal de “unidade europeia”, as peregrinações a Kiev para obter uma fotografia ao lado do “herói” Zelensky e de qualquer coisa com o presidente Zelensky para fins de propaganda interna, a Ucrânia na NATO, o “não há alternativa à vitória da Ucrânia sobre a Rússia”, o Plano de vitória de 10 pontos de Zelensky, o Plano de Draghi para a economia de guerra, o “nós já vencemos a guerra”,  as “negociações apenas quando a Rússia devolver os territórios ocupados (incluindo a Crimeia) e se retirar”, o “queremos a paz, mas não podemos negociar com Putin, a paz justa: tudo para nada. Em três semanas, o ciclone Trump, entre uma chamada e outra e alguns grunhidos, virou não só uma das páginas mais vergonhosas de covardia, servilismo e desinformação da história moderna, como decidiu que a guerra na Ucrânia, ou melhor, o que resta dela, tinha de acabar. Com quem ele decide? Ah, claro. Precisamente com Putin.

É Trump um traidor? Não. Ele apenas reconheceu a única coisa que importa: não a política do mais forte, como a falange de janízaros vendidos propaga, mas a realidade inescapável das relações de poder. Uma realidade dolorosa, mas muito menos dolorosa do que uma guerra que, se prolongada, não só multiplicaria o sofrimento do povo ucraniano, como fortaleceria o regime de Putin. Na verdade, acabaria com a Ucrânia (os russos conquistaram 20, e não 100% do país).

E foi precisamente esta realidade reconhecida pelos principais contendores – Putin e Zelensky – e o facto de não ser mais possível manter unido o fracasso da guerra, que levou a UE, depois de dizer “nunca, nunca”, a dobrar os joelhos diante do invasor e do suposto traidor para exigir os seus direitos na mesa de negociação e reconstrução, adquiridos sobre uma trágica pilha de mortos. Mas não só isso. A UE, liderada pelo quarteto Úrsula-Kallas-Macron-Costa (e antes Scholz), também lhes implora por “garantias de segurança”, como se fossem todos estatuetas de Chamberlain e Daladier.

Sejamos claros. Nestes três anos, a UE tinha duas opções: vencer a guerra ou preparar-se para a paz. Ao invés disso, ela perdeu a guerra e não se preparou para a paz. E não foi por falta de oportunidades para chamar a si o papel natural de mediadora, ao invés de entrega-lo ao ditador Edorgan, a Xi, ao Papa, Orbán e Trump. Ela poderia ter apoiado o acordo russo-ucraniano em Istambul dois meses após a invasão, em condições muito mais vantajosas para a Ucrânia do que aquelas que obterá agora: ao invés disso, ficou do lado dos sabotadores Johnson e NATO. Poderia ter pressionado Zelensky a negociar após a primeira contraofensiva ucraniana: em vez disso, pressionou-o a “lutar até à vitória” e a assinar um decreto que o proíbe de negociar com Putin (a propósito: quando irá aboli-lo?). Poderia ter advertido Zelensky para a inutilidade de uma Cimeira da Paz sem a Rússia: ao invés disso, Von der Leyen apoio-o (a mesma Von der Leyen que agora treme de indignação por ter sido excluída das negociações em Riad). Poderia, ainda, ter apoiado Orbán e Scholz, que reabriram os canais com Putin antes da chegada de Trump: em vez disso, a UE excomungou-os. E a culpa é de Trump?

Obviamente, não. A UE tem sido uma caricatura de si mesma desde antes de Trump, e à medida que os “véus da propaganda” são levantados, menos dúvidas restam de que foram os seus excessivos complexos de superioridade que a conduziram ao beco sem saída em que se encontra, ao sobrestimar a sua própria força e subestimar a força da Rússia. Em suma, a UE baseou a sua política na força. Sem forças, ela ficou sem política.

E, em lugar de reconhecer o erro, os líderes europeus mais cegos do mundo, querem convencer Trump (e os cidadãos europeus) de que a sua belicosidade grotesca é a única que pode ser adoptada e que sua narrativa é a única confiável. Então eles dedicam-se, com uma determinação assustadora, a transmitir a ideia de que, a UE, é hoje, parafraseando Keijo Korhonen, “um manicómio gerido por pacientes”. É o que acontece quando, por exemplo, os ouvimos dizer que vão enviar tropas de paz para Kiev, quando não há sequer uma trégua à vista, armas, mesmo sem guerra, mais sacrifícios humanos (de outros) para travar o avanço de Putin. Trump não os apoia? Iremos sozinhos contra o mundo. Sim, parece ficção. Faz lembrar algumas das cenas finais do filme “A Queda”, em que os últimos generais reunidos em torno de Hitler no bunker movimentam divisões e tanques que não existem mais.

Infelizmente, não é ficção. No manicómio de Von der Leyen tudo gira em torno de guerra. É a guerra, e não a paz, a cola que ainda mantém a UE unida. A comprová-lo está, entre outros, o anúncio que fez, com um sorriso de orelha a orelha, que vai permitir aos países-membros gastarem à tripa-forra em defesa sem restrições orçamentais.

Ou seja, de pelo menos 3% do PIB (apresentados como um desconto em relação aos 5% exigidos por Trump) o que equivale a um aumento de 50%” em relação às despesas militares da Rússia, segundo o Osservatorio CPI. E para quê? Para se preparar uma guerra hipotética contra a Rússia. Tipo: “as nossas sanções produziram um efeito devastador na máquina de guerra russa”. Tudo isso sem que a UE tenha ainda dito uma palavra clara sobre o que quer: “Vitória militar total da Ucrânia” e “mudança democrática na Rússia e em outros países autoritários como a Bielorrússia”, como consta na resolução votada há um mês em Bruxelas?

E diante deste silêncio ensurdecedor, convinha saber quais são, de facto, os interesses que a UE persegue e defende, porque não está claro se estamos perante um movimento desesperado para tentar voltar a um jogo do qual foi totalmente excluída ou se, pelo contrário, a “paz justa”, pretendida pelas classes dominantes europeias, esconde um desejo de uma paz o mais injusta possível para os ucranianos. Senão mesmo, a sua extinção.

Fonte aqui

7 pensamentos sobre “União Europeia: um manicómio gerido por pacientes

  1. Quanto ao observador, cujos conteúdos não consumo (já dei por mim a ouvir uma entrevista na rádio Observador, talvez porque tinha algum interesse ouvir o que dizia o entrevistado, há sempre excepções à regra), é ver as trombas com que uma das suas figuras destacadas nas TV se apresentava ontem num painel a três navCNN que discutia os imbróglios jurídicos, políticos e económicos em que está enredado o ainda Primeiro-Ministro. Até chegou a dizer, carrancudo e com certa raiva, que esta situação era um mar que se abria para o Almirante Gouveia, o que para ele até deve ser um desejo, pois que se estava a falar do Primeiro-Ministro e não do Presidente da República (se bem que Marcelo é como se fosse o “enabler” de Montenegro, por muito que agora seja conveniente que pareçam distantes e amuados).
    A personagem de quem falo é nada mais nada menos que o Director Executivo do Observador, Miguel Pinheiro. Anima-te, homem. Ainda lá tens uma maioria(zinha) e um presidente(zinho), ainda não é caso para desespero…

  2. Uma pergunta, esta “direita” que parece mais consciente da realidade que a que nos governa, e também da que é “oposição” (faz de conta) na Assembleia da República, está representada em que partido? Serão os “filhos” da alt-right americana? Também não me parece ou venerariam Trump. Será uma direita “pouco ortodoxa”? Ou que ganhou juízo, vergonha na cara? Ou serão fãs das AfD e das Melonis desta vida?
    Quanto ao artigo, não me parece desajustado em si mesmo, até fica a sensação que é escrito e publicado por pessoas sérias e honestas. Daí a minha curiosidade…

  3. Sim, os ucras não escolhem idade e, há agora, nem sexo, pelo que a Ferra Aveia e a Solerias também podem ir.
    Mas quando um jornal como o Observador, que levou os últimos três anos a tentar convencer nos de que a guerra podia ser ganha, a exultar com os parcos sucessos ucranianos, a garantir que a Rússia estava a beira da guerra civil vira agora o bico ao prego e porque a guerra está mesmo perdida.
    Mas a Europa parece continuar a acreditar que pode lutar sozinha contra a Rússia porque ninguém consegue acreditar que o sonho de Napoleão e Hitler voltou a morrer.
    E as nossas vidas para eles não valem uma casca de alho.
    Que grande patranha e que grande sarilho em que estamos metidos.

  4. Mais um que acha que a guerra pode ser ganha. Deve estar à espera de algum messias armado de bombas atómicas….Haja sanidade mental

  5. …mas que raio de presunção de que a guerra está perdida. Deve ser um sentimento parecido com aquele que sustenta de que Gaza vai ser uma Riviera do Médio Oriente… Qualquer dia vocês colocam uma boina de Che Guevara na cabeça do Trump. Já vale tudo…

    • A derrota ainda pode ser adiada… Se a UE transformar as fabricas de supositórios em fabricantes de balas! O primeiro passo está concluído pois já existem os moldes!

    • A guerra está mais do que perdida. Sabe porquê? Não há mais armas e, acima de tudo, não há mais ucrânianos dispostos a serem carne para canhão. Os esbirros da SBU bem que fazem “pressgang” a torto e a direito, mas os poucos homens que restam ou os subornam ou fogem ou desertam. Em chegando o verão, vão ser uma catástrofe. Entende ou quer pegar numa canhota e ir para lá? Os gajos aceitam todos, sobre isso não há problema, entre os 18 e os 60 anos, são todos bem-vindos.

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